Constantino, Cristianismo e Concílio de Niceia: Mitos e verdades!

Nos últimos anos, com o acesso crescente à informação (muito em função da expansão da internet), é cada vez mais comum ouvirmos ou lermos afirmações a respeito do processo histórico que levou ao cristianismo tal como conhecemos hoje. E um dos assuntos preferidos é a questão da influência do imperador romano Constantino, que teria sido o responsável pela escolha dos livros que estão na bíblia, pela institucionalização do cristianismo e pela sua proclamação como religião oficial do Império. Porém, infelizmente muitos se gabam de possuírem essas informações “privilegiadas”, mas as fontes que usam são meros vídeos e textos encontrados na internet (e sabemos que o mundo virtual aceita qualquer coisa, inclusive qualquer conteúdo que eu venha colocar neste artigo), em vez de pesquisadores sérios, de especialistas na área, reconhecidos internacionalmente.


     Mas vamos direto ao que interessa. O que de fato sabemos sobre Constantino e sua influência no cristianismo?
A RELIGIÃO NO IMPÉRIO ROMANO
 
Os cristãos, desde a morte de Jesus até o quarto século (época do Imperador Constantino), eram a massacrante minoria dentro do império romano e em algumas épocas sofreram pesadas perseguições (seja por judeus, por grupos locais “pagãos” – refiro-me com este termo a qualquer não cristão, nem judeu – ou por incentivo/decreto governamental). Jesus já foi uma vítima de execução; alguns de seus discípulos possivelmente também foram. E por que essa perseguição acontecia? Os judeus acusavam o ainda pequeno grupo de cristãos de “blasfêmia” por considerarem Jesus como o Messias; a gerada por grupos locais era geralmente motivada pela questão teológica prática: os romanos adoravam vários deuses, como Júpiter, Vênus e Marte, além de deuses menores, que seriam os responsáveis pela fertilidade da terra, pela saúde e pela riqueza. Para os deuses beneficiarem as pessoas, teriam que estar felizes e para isso, tinham que ser adorados. Se isso não acontecesse, ficariam irados e poderiam gerar um caos na vida das pessoas. Então, quando ocorriam catástrofes naturais, fome ou epidemias o que pensavam? Que era culpa dos cristãos, pois eles não reconheciam os deuses com sacrifícios e oferendas, gerando fúria divina. Assim, passavam a ser alvos de violência (os judeus nem tanto, já que era uma religião bem antiga que convivia em relativa harmonia com os romanos), chegando ao ponto de algumas vezes, lideranças de Roma pressionarem cristãos (com tortura e morte) a negarem sua fé, a fim de acalmar os ânimos dos seus deuses. Essa perseguição atingiu seu ápice nos dias dos imperadores Diocleciano e Maximiano, quando (principalmente por iniciativa do primeiro) determinaram uma perseguição implacável contra os cerca de 7% de cristãos que havia nessa época (ano de 303 dC) no império, com a queima de livros, com a destruição das igrejas cristãs existentes e com a prisão de lideranças. No próximo ano houve um decreto que determinou sacrifícios gerais dos habitantes do império aos deuses romanos. Como os cristãos quase sempre não os realizavam, eram violentados e mortos, nessa “Grande Perseguição” que durou cerca de 9 anos.
     Constantino assume o poder no império e converte-se ao cristianismo no ano de 312 dC (e um ano depois determina o fim nessas perseguições). Mas será que essa conversão foi genuína ou teria sido uma mera manobra política de Constantino, como afirmam muitos atualmente?
CONSTANTINO TORNA-SE CRISTÃO
    
 De acordo com o autor cristão Eusébio (o “Pai da História da Igreja”, como é conhecido), na biografia que produziu de Constantino, o imperador teria lhe confessado como ocorreu sua conversão: Quando Dioclesiano abriu mão do poder em 305 dC, Constantino assumiu e teve que guerrear (e venceu) contra o outro imperador (Maximiano), que queria o poder do império para si. Porém, com a derrota de Maximiano, seu filho Maxêncio assumiu o poder que era do pai. Como Constantino desejava governar sozinho, partiu com seu exército para guerrear também contra o novo imperador. Quando essa batalha estava prestes a ocorrer, Constantino teria tido uma visão no céu de uma cruz com uma frase: “Com este símbolo vencerás” (segundo sua suposta declaração a Eusébio, que registrou na biografia). Em seguida teria sonhado que Jesus dizia a ele para usar o símbolo da visão, que fazendo assim venceria a batalha. Após realizar um grande objeto de ouro e pedras preciosas e ser aconselhado pelos seus conselheiros religiosos que deveria promover o culto ao Deus dos cristãos, entrou na batalha. E o que aconteceu? Venceu o duelo e tornou-se o imperador da parte ocidental do Império.
 
     Vale destacar que os romanos, na época de Constantino, tinham a ideia de que havia um Deus ainda maior que os grandes deuses e esse imperador adorava o deus “Sol Invictus” (“sol invisível”), antes e depois da conversão (moedas cunhadas após ter se tornado cristão evidencia que o “deus sol” ainda era desenhado nelas), quando parece ter acreditado que esse deus seria o mesmo Deus dos cristãos. É provável que ele tenha tido uma fé que promovia um sincretismo entre sua crença pagã e a nova crença cristã, tanto que esse pode ser um motivo para que determinasse que o culto cristão fosse realizado no domingo (“dia do sol”) e também que o “Natal” (nascimento de Jesus) fosse comemorado no período do solstício de inverno.
  
   Em 313 dC (um ano após sua conversão) Constantino entra em acordo com o General Licínio (que na época controlava a porção oriental do império) para que os cristãos deixassem de ser perseguidos. Foi então que surgiu o famoso “Édito de Milão” (Édito de Tolerância), que estabeleceu uma liberdade de escolha de religião e culto para todos os habitantes. E assim, praticamente cessou a violência promovida por pagãos contra os cristãos.
 
     Pode-se discutir as razões que motivaram a conversão de Constantino ao cristianismo (ou seu tardio batismo, prestes a morrer, no ano de 337 dC) e até mesmo pode-se afirmar que ele manteve por alguns anos uma posição sincrética de paganismo com fé cristã. Porém não vejo motivos para duvidar de que ele realmente cria no Deus cristão e a partir da década de 320 dC parece que ele assumiu mais explicitamente uma crença “genuinamente cristã”. Alguns insistem na hipótese de que sua conversão tenha ocorrido por pura conveniência, já que seria uma arma forte lutar pela união romana em torno de apenas um imperador, se o império tivesse apenas uma fé, com um só Deus. De qualquer forma, a conversão de Constantino fez com que o cristianismo deixasse de ser uma religião perseguida e passasse a ser uma religião beneficiada. E por ser a religião do imperador, começaram a ocorrer conversões em massa e a fé cristã passou de minoritária para majoritária já no fim do quarto século. E após Constantino, praticamente todos os imperadores foram cristãos, o que estimulava cada vez mais a ascensão da religião cristã.
O CONCÍLIO DE NICEIA
     
É inegável que Constantino, embora pareça ter tido uma conversão verdadeira ao cristianismo, tinha também um interesse em unificar o império romano com a adoção dessa “nova” religião. Porém como poderia ocorrer um união se dentro do próprio cristianismo havia uma grande divergência e várias disputas em relação a pontos cruciais da fé? As teologias cristãs na época eram muitas, algumas tão diferentes entre si que no máximo tinham em comum a adoção de alguns termos. Como unificar o império em um pilar religioso desunido? Foi nesse contexto que Constantino convocou um conselho de mais de 200 bispos cristãos, a fim de resolver esses conflitos. Devido ao nome da cidade em que ocorreu, no ano de 325 dC, ficou conhecido como o “Concílio de Niceia”.
 
     Como dito, havia muitas discordâncias entre os cristãos, desde a morte de Jesus, em relação a muitos pontos da fé e alguns desses conflitos foram discutidos nesse concílio. O ponto chave debatido foi: “Em que sentido Jesus era divino”?
 
     O que os cristãos entendiam sobre esse assunto variou muito com o tempo. Quanto mais nos afastamos, temporalmente, da morte de Jesus, mais observamos uma tendência de ver Jesus como “mais divino” (observe que isso também se reflete nos quatro evangelhos que temos na bíblia, sendo que o mais antigo deles – Marcos – nos mostra um Jesus menos “divinizado” do que o último evangelho – o de João -, embora todos eles nos mostrem um Jesus tanto divino, quanto humano), de forma que nessa época (quarto século), praticamente todos os cristãos viam Jesus como divino (variando na intensidade dessa divindade). Então os conflitos agora eram apenas em relação a como conciliar isso com a humanidade de Jesus, ou seja, como Jesus poderia ser divino e humano ao mesmo tempo?
     Diferentes grupos de cristãos entendiam de diferentes formas esse ponto ao longo dos séculos:
- - Havia quem defendesse que Jesus era tão humano que não poderia ser divino (essa ideia era mais prevalente nas primeiras décadas após a morte de Jesus – antes mesmo de serem escritos os evangelhos ou, pelo menos, de serem reconhecidos como escrituras “inspiradas”). Alguns defensores dessa posição são os chamados “adocionistas”, que diziam que Jesus era um ser humano como todo os outros (inclusive sem a ideia de nascimento de uma virgem), sendo apenas mais santo, justo e puro que os demais. Por causa disso, Deus o adotou como “Filho amado” em seu batismo e a partir de então entrou na missão de morrer pelos pecados do mundo. E como recompensa por esse sacrifício, Deus o ressuscitou e o colocou à Sua direita, aguardando o dia em que retornará à Terra para estabelecer o juízo e Seu reino.
- - Havia quem dissesse que Jesus era tão divino que nEle não havia espaço para ser humano (essa visão é mais tardia, encontrada no segundo e terceiro séculos) e um exemplo de grupo cristão que se enquadra nessa perspectiva é o dos “docetistas”. Para eles, Jesus parecia ser um humano, mas não o era. Jesus era 100% Deus, com uma imagem que transparecia características e sentimentos humanos, mas que não eram reais.
- - A maioria dos cristãos, porém, negava as duas teologias acima e sustentavam que Jesus era humano e divino, ao mesmo tempo. Tanto, que ambas as abordagens citadas já no segundo século começaram a ser encaradas como “heresia” (ensino falso) pelo cristianismo. Lembrando que algo pode ser considerado um ensino correto (ortodoxo) em determinada época e tempos depois ser condenado como heresia. Quem decide isso são os segmentos dominantes e/ou majoritários. Ou seja, as duas posições acima foram perdendo o debate, diminuindo sua força e influência, embora não tenham desaparecido.
     Se observar bem, o problema é ainda mais profundo, pois em cada teologia há várias questões pendentes: Se Jesus é Deus e o “Deus Pai” também o é, então há dois deuses? Se o Deus Pai desceu do céu e se tornou Jesus (humano), quem ficou sendo Deus nesse tempo? Se Deus Pai continuou sendo Deus em Jesus, então Deus sofreu e morreu? Se Deus Pai era Jesus, então Jesus orava a si mesmo? Percebe que toda teologia que surgia a fim de responder uma questão era questionada e com o tempo passava de “ortodoxa” para “heresia”?
 
     Mas voltando ao ponto inicial, o que o Concílio de Niceia tem a ver com isso? É que no início do quarto século surgiu uma teologia chamada “arianismo”, que, em linhas gerias, dizia que no início havia apenas “Deus Pai”, que fez surgir depois Seu Filho (Cristo), que deu origem à criação e que tornou-se homem, nascendo de uma virgem, morrendo pelos pecados dos homens, ressuscitando e voltando para a destra de Deus. Após um “sucesso” inicial, levantaram cristãos (como Atanásio) com objeções a essa teologia, já que supunha que Cristo era submisso a Deus Pai e não estava em igualdade com Ele. Para esses opositores, Cristo era tão divino quanto o Pai e não teve nenhum instante em que não existisse. Era o desenvolvimento da “doutrina da trindade”. Então, no Concílio de Niceia a disputa era mais no sentido de como Jesus era divino? Era divino por ter surgido de Deus Pai ou por ser Deus desde sempre, tendo a mesma substância (e ausência de origem) que o Pai? E no concílio a doutrina de Ário foi derrotada pela massacrante maioria dos “votos” dos bispos.
     Conclusão: O Concílio de Niceia “oficializou” uma posição como ortodoxa (que por sinal se manteve, a grosso modo, ao logo do tempo após muitos debates) em relação à divindade de Cristo. Constantino não era um bom teólogo e não teve influência nessa decisão, a não ser na questão de ter organizado o concílio. O que ele desejava era que os cristãos decidissem ficar de um lado ou de outro e parassem com as disputas. Ele, nem esse concílio, decidiu nada em relação a quais livros entrariam no Novo Testamento (isso só foi consolidado mais tarde) e tampouco foram responsáveis pela institucionalização do cristianismo como religião oficial do império (isso só ocorreu em 385 dC, com o imperador Teodósio). Isso mesmo, o cristianismo não nasce em Constantino e tampouco ele a oficializa em Roma. Constantino converte-se à fé cristã (isso influencia muita gente a fazer o mesmo), cessa as perseguições e convoca esse concílio. Porém a escolha dos livros do Novo Testamento foi fruto de longo processo, que só foi “oficializado” décadas depois.
Autor: Wésley de Sousa Câmara
13/04/2016

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